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"Moçambique é e não é país de língua portuguesa", diz Mia Couto

Reconhecido como um dos mais lidos autores contemporâneos de língua portuguesa, Mia Couto afirma-se como um buscador de identidades.

Alfredo Prado

Brasília - Em recente entrevista ao jornal Notícias, por ocasião do lançamento do seu mais novo livro, “Venenos de Deus, Remédios do Diabo”, Mia Couto afirma que "Moçambique é e não é país de língua portuguesa". Uma entrevista em que o jornalista Gil Filipe questiona o escritor sobre a identidade da sua obra, mas também sobre as lusofonias, a comunidade dos países de língua portuguesa, o papel de Portugal e do Brasil e o sim ou não ao acordo ortográfico.

Autor, entre outros, dos romances “Terra Sonâmbula” e “ Varanda do Frangipani", reconhecido internacionalmente como um dos mais lidos autores contemporâneos de língua portuguesa, Mia Couto, afirma-se, na entrevista ao Notícias, como um buscador de identidades.

Autor de 23 livros publicados, diz ficar sempre com o sentimento, "com a impressão de que ainda não escrevi o tal livro que eu quero escrever". "Esse é um fenómeno existente e penso normal junto de quem abraça a escrita. De qualquer maneira não me sinto satisfeito, há em mim uma intranquilidade e uma inquietação que nos faz correr para além do que já fizemos. Acho que isso é que nos move não como escritor mas como pessoa, pois todos nós estamos sempre à procura de uma coisa que está sempre mais além e mais além...".

A escrita é um risco, diz. "O risco é esse, sentir-se sempre tentado e a fazer mais um livro e encarar isso de uma maneira quase banalizada, pois perdemos aquela atitude e aquela paixão intensa que marca o primeiro livro, o que é grave. Substituímos esse pensamento e sentimento pela procura do tal livro que nem sequer sabemos o que é e como é que o devemos escrever".

O livro

Sobre “Venenos de Deus, Remédios do Diabo”, Mia Couto afirma ser "um livro mais ou menos universal"."Esta história podia ocorrer em qualquer lado do mundo e também menos crível a factos históricos, embora aqui, curiosamente, apesar de estar a navegar um pouco pelo mundo faço uma coisa que nunca fiz, como pôr referência de lugares precisos, como, por exemplo, Murébuè, Pemba, o que nunca tinha feito anteriormente, embora me referisse a Moçambique pelo contexto mas pondo lugares fictícios...".

Um livro em que o escritor procura novas experiências no domínio da construção da linguagem. "Eu faço uma coisa que eu penso que é nova, como, por exemplo sou mais comedido na invenção de palavras, fazendo-o só quando era preciso e não como um factor de busca literária ou marca. Por outro lado, o lugar do narrador é um lugar que aparece pela primeira vez num livro meu como personagem também".

Sobre o futuro, Mia Couto diz ter o sentimento de que "ainda não escrevi o tal livro que eu quero escrever". "Esse é um fenómeno existente e penso normal junto de quem abraça a escrita. De qualquer maneira não me sinto satisfeito".

"Não tenho ambição do ponto de vista de carreira. Mas gostava de manter comigo próprio uma relação em que possa inventar mais. Eu penso que há mais coisas que eu posso inventar, mais personagens, mais vidas que eu posso criar dentro de mim. A felicidade que a escrita me dá vem sobretudo do facto de eu poder ser outro, ser determinado personagem que eu próprio criei, e, como podes imaginar, isso não tem fim, eu quero ser infinito e quero ser eterno. Encontrei uma maneira de mentir a mim próprio me multiplicando em pessoas e em personagens que eu vou criando", solta Mia Couto na entrevista ao jornalista Gil Filipe.

"Lusofonias"

E o que pensa Mia Couto da lusofonia e da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa em que Moçambique está inseerido? "Há uma organização que se chama CPLP, que está fazendo coisas, reúne-se, tem comissões de trabalho, etc., e eu acho que por aqui essa organização existe e ninguém pode negar. E depois existe outra coisa que se pode questionar que é se isso tem correspondência de uma comunidade de afectos, de uma comunidade de interacção. E eu acho que esta existe também, não da maneira como os políticos a querem apresentar mas existe", diz o escritor.

"A língua portuguesa deu-nos uma certa afinidade histórica. Aqui na língua temos que ter algum cuidado, porque se queremos construir uma família, uma comunidade... Temos que pensar que alguns moçambicanos, alguns angolanos e alguns guineenses, não falam português. Há outros casos, também, como o de Timor Leste, em que dizemos falsamente que é um país de língua portuguesa. É uma coisa falsa e desorientada politicamente e culturalmente dizer que aquele país é de língua portuguesa. Timor não é um país de língua portuguesa, nem a maioria dos timorenses fala português", avalia o autor.

"E Moçambique?", questiona o entrevistador. "Moçambique é um país que é de língua portuguesa! E não é ao mesmo tempo. Alguns moçambicanos é que pertencem à esse universo, o de terem a língua portuguesa como o seu veículo de identidade, de afirmação cultural, etc. São poucos os moçambicanos que falam, escrevem, sonham, amam na língua portuguesa. E não são menos moçambicanos por isso nem os outros mais moçambicanos pelas outras línguas que usam. Eu acho que há aqui uma tentativa de procurar a identidade moçambicana sempre lá, nas raízes, há séculos, quando provavelmente tiveram a mesma mobilidade, como o changana que existe hoje não é o mesmo de há 50 anos ou antes da chegada dos ngunis. Portanto, eu acho que essa comunidade, a de língua portuguesa, existe de facto. Penso que a questão a colocar (...) é se ela é mesmo aquilo que nós queremos que seja. Eu acho que o grave é haver manipulações..".

Manipulações

Que manipulações? "Da parte dos que querem ser mais que os outros, dos que disputam os outros! Eu acho que a disputa é entre Portugal e Brasil, que querem usar esta bandeira como instrumento de busca de privilégio na relação com os outros países de língua portuguesa. E às vezes há aqui uns lapsos de língua quando eles se referem aos outros como os lusófonos, quando os portugueses falam em “países lusófonos” excluindo-se eles próprios e querendo referir-se apenas a nós, países africanos de língua portuguesa. Às vezes estabelecem um eixo triangular da lusofonia, composto por Portugal, Brasil e depois África, como se nós não tivéssemos direitos a nomes próprios como países. A lusofonia de que se fala tem sete ou oito países, contando com Timor Leste. Mas também não vou ficar a aceitar a alguns pronunciamentos que se fazem entre nós. Eu sou adepto da crítica, desde que devidamente fundamentada", responde.

Mas, avalia Mia Couto, a comunidade existe. E diz: "penso que fazer uma recusa total da lusofonia, de uma comunidade de falantes de língua portuguesa no mundo, de que nós fazemos parte, não é correcto. Porque essa comunidade pode nos servir em muitos momentos, como o que mais ou menos se verifica agora, em que o processo de globalização é muito forte e nos pode sufocar. Talvez essa afirmação de um espaço próprio, onde nós temos alguma coisa a dizer, é bem mais útil que as perdas de tempo que temos tido ao rejeitarmos aquilo que por razões óbvias não se pode rejeitar".

O exemplo brasileiro sustenta a opinião do escritor moçambicano. "Não nos esqueçamos que com o Brasil temos afinidades históricas importantíssimas que muitas vezes esquecemo-nos que elas existem e que são intrínsecas à existência de todos nós. Há coisas que nós devíamos recuperar e valorizar historicamente e se calhar isso nos criaria um espaço de afirmação e de negação dessa globalização e de homogeneização do mundo que me parece se está a tentar construir por algumas correntes de pensamento e de atitude".

E a CPLP ?

"Não vou avaliar a qualidade do funcionamento da organização, mas sinto que ela é pouco visível, é pouco participativa e apela muito pouco para que nós participemos nela, por exemplo para aquilo que possam ser as nossas sugestões. Eu acho que também aqui ao invés de ficarmos no café ou no sofá a dizer mal, se calhar devemos levantar as nossas vozes para dar a sugestão de como é que gostaríamos que fosse esta organização que pretendemos seja mesmo uma comunidade de países".

Acordo ortográfico?

Questionado sobre a existência de um braço-de-ferro entre Portugal e Brasil e perguntado que lado é que está, Mia Couto responde: "De nenhum! Estou do lado de Moçambique". "A minha opinião é uma opinião de escritor e de cidadão. Eu nunca tive problemas em ler livros brasileiros. A grafia ligeiramente diferente não me faz confusão. O Brasil lê os meus livros e lê os livros da Paulina Chiziane sem problema nenhum. Pelo contrário acho que há da parte dos brasileiros um certo encanto ao se aperceberem que se trata de uma realização linguística diferente. Portanto, não penso que seja de grande importância a questão do acordo ortográfico. Mas respondendo à sua pergunta, não faço guerra contra o acordo mas não sou a favor dele".

"Eu acho - diz Mia Couto - que o importante era discutir outras coisas que nos afastam e mantêm o enorme desconhecimento que há entre nós. O Brasil não sabe muito de Moçambique. Portugal idem. Eu acho até que os moçambicanos sabem muito mais sobre os outros do que os outros sabem sobre nós. Os moçambicanos são mais atentos em relação ao mundo e têm a capacidade de olhar para o mundo de uma maneira muito mais crítica, no sentido de conhecê-lo e por isso estarem dotados de opinião credível, o mesmo não acontecendo com muitos daqueles com quem nos relacionamos".

O mais importante

Afinal, defende o escritor, há acções culturais "que temos que fazer para que os livros circulem melhor entre nós, o que francamente não está a acontecer agora". "Com uma ortografia ou outra se não mudarmos essas coisas não estaremos a caminhar juntos. A importação do livro deve ser repensada, porque não é fácil sobretudo para nós, os mais pobres. Deve-se pensar nas edições conjuntas, divulgação do que é que estamos a fazer, o que é que é a história comum destes povos, os seus patrimónios de identidade comum desses povos, tudo isso é mais importante que tentar buscar um acordo para a ortografia da língua".

Portugal Digital, 1-07-2008

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