Países lusófonos: todos diferentes, todos iguais
Viajando há dias no Metro, ouvi ao meu lado uma acesa discussão sobre o Acordo Ortográfico em que os dois interlocutores, ambos acerrimamente descontentes com o referido diploma, se insurgiam contra o que eles chamavam de “capitulação aos Brasileiros”, “falta de respeito pelos Portugueses”. E mais diziam: “Como é que podem obrigar-nos a falar brasileiro? Por que é que havemos de passar a dizer de fato em vez de de facto?” “Tu não achas que se devia fazer um referendo? Nós é que devíamos decidir!” Nestas e noutras mui doutas barbaridades ocuparam os vinte e tantos minutos que durou o percurso.
Comentemos, antes de mais, estas afirmações que, aliás, com mais erudição, ou mais artificio, se têm vindo a ouvir a gente bem mais ilustrada do que eram, aparentemente, os meus companheiros de viagem. A primeira observação vai para o referendo. Tem alguma graça ouvir falar de referendo a propósito desta questão. Quando algum falante dá um pontapé na gramática ou usa sem motivo um estrangeirismo, consulta os demais antes de desfigurar a língua que é de todos? Mas passemos adiante.
Convém que nos detenhamos no que eles chamaram de “falar brasileiro”. Esclareçamos desde já que ninguém vai “falar brasileiro” – seja isso o que for – em resultado do Acordo. No entanto, devemos lembrar os leitores que de há muito os portugueses se vêm rendendo ao falar do Brasil em consequência da popularidade das telenovelas e ninguém até hoje considerou tal fenómeno prejudicial à Língua Portuguesa. E com razão, porque não é. No Brasil, tal como em Portugal e na Guiné-Bissau, Angola, Cabo-Verde, S. Tomé, Moçambique e Timor-Leste, fala-se a mesma língua – o Português, em variedades linguísticas que não afectam a sua unidade. Que entre falantes de diferentes variedades, sociais ou geográficas, haja permeabilidade lexical ou fonética, ou outra, isso só contribui para a coesão da língua. O que agora está em causa é apenas a grafia, isto é, a representação gráfica da língua que falamos. E a grafia resulta de uma convenção estabelecida, se possível por consenso, entre especialistas de todo o espaço onde a língua é falada, no sentido de se encontrar o melhor critério, o mais lógico, o que mais facilite a tarefa de quem escreve e de quem lê. Porque quem fala não precisa de ortografia. E é bom não esquecer que está por fazer o trabalho de alfabetização da esmagadora maioria dos cidadãos dos países lusófonos. O seu analfabetismo não os impede de falarem Português, mas impede-os de acederem à escrita e, portanto, à cultura. Sosseguem, pois, os mais alarmados porque apenas está em causa a grafia, não a fala.
Desde há um século, porém, que Portugal (que incluía então as actuais ex-colónias) e o Brasil vinham procurando uma ortografia tanto quanto possível unificada. O Novo Acordo Ortográfico veio pôr cobro à deriva em que andava a ortografia da língua. Já em 1911 Portugal procedeu à primeira grande reforma da ortografia, sem a participação do Brasil, que passou a ser adoptada pelos falantes portugueses, mas não no Brasil que, como país soberano, não a acatou. Chegou-se agora a um acordo, o melhor e o único possível. Seja bem-vindo!
O Novo Acordo privilegia o critério fonético em desfavor do etimológico. Quer isto dizer que ninguém, em Portugal, vai ser obrigado a escrever “de fato” porque em Portugal se diz “de facto”, logo, a grafia corresponde à fonética. Pela mesma razão iremos escrever atual e ótimo porque é assim que dizemos dos dois lados do Atlântico. No caso de fonética díspar, o Acordo estabelece a grafia, díspar também, segundo a norma culta lusoafricana e segundo a norma culta brasileira. No total, não chegam a 2% as palavras com diferente grafia. Porquê tanto desacordo? Fica a sensação que há muito desconhecimento do que, de facto, está consagrado nesta revisão das normas ortográficas.
Por fim, lembremos que, «sendo a língua portuguesa um instrumento de comunicação de oito países, de quatro continentes, com mais de duzentos milhões de falantes, e língua oficial ou de trabalho de mais de uma dúzia de organizações internacionais»(1), a unificação da ortografia só pode ter vantagens. E a estratégia portuguesa é a correcta porque consiste em envolver o Brasil num esforço colectivo de promoção da língua portuguesa, mas em que cada país lusófono conta o mesmo institucionalmente. Não deixa de ser interessante pretender que Portugal tenha um peso acrescido na CPLP quando tantos criticaram a desigualdade de poder dos países da União Europeia consagrada no Tratado de Lisboa.
Será de todo saudável que os portugueses tomem consciência que o eixo da lusofonia já não se centra em Lisboa, mas algures entre o Rio de Janeiro e Brasília. Só quando o tiverem compreendido, e interiorizado, estarão a contribuir, de facto, para a dignificação da sua língua.
(1) JOÃO MALACA CASTELEIRO e PEDRO DINIS CORREIA Atual – O novo acordo ortográfico. O que vai mudar na grafia do português (Lisboa, Texto Editora, 2007)
Albina de Azevedo Maia
TERRAS DO AVE, 11/07/2008
Viajando há dias no Metro, ouvi ao meu lado uma acesa discussão sobre o Acordo Ortográfico em que os dois interlocutores, ambos acerrimamente descontentes com o referido diploma, se insurgiam contra o que eles chamavam de “capitulação aos Brasileiros”, “falta de respeito pelos Portugueses”. E mais diziam: “Como é que podem obrigar-nos a falar brasileiro? Por que é que havemos de passar a dizer de fato em vez de de facto?” “Tu não achas que se devia fazer um referendo? Nós é que devíamos decidir!” Nestas e noutras mui doutas barbaridades ocuparam os vinte e tantos minutos que durou o percurso.
Comentemos, antes de mais, estas afirmações que, aliás, com mais erudição, ou mais artificio, se têm vindo a ouvir a gente bem mais ilustrada do que eram, aparentemente, os meus companheiros de viagem. A primeira observação vai para o referendo. Tem alguma graça ouvir falar de referendo a propósito desta questão. Quando algum falante dá um pontapé na gramática ou usa sem motivo um estrangeirismo, consulta os demais antes de desfigurar a língua que é de todos? Mas passemos adiante.
Convém que nos detenhamos no que eles chamaram de “falar brasileiro”. Esclareçamos desde já que ninguém vai “falar brasileiro” – seja isso o que for – em resultado do Acordo. No entanto, devemos lembrar os leitores que de há muito os portugueses se vêm rendendo ao falar do Brasil em consequência da popularidade das telenovelas e ninguém até hoje considerou tal fenómeno prejudicial à Língua Portuguesa. E com razão, porque não é. No Brasil, tal como em Portugal e na Guiné-Bissau, Angola, Cabo-Verde, S. Tomé, Moçambique e Timor-Leste, fala-se a mesma língua – o Português, em variedades linguísticas que não afectam a sua unidade. Que entre falantes de diferentes variedades, sociais ou geográficas, haja permeabilidade lexical ou fonética, ou outra, isso só contribui para a coesão da língua. O que agora está em causa é apenas a grafia, isto é, a representação gráfica da língua que falamos. E a grafia resulta de uma convenção estabelecida, se possível por consenso, entre especialistas de todo o espaço onde a língua é falada, no sentido de se encontrar o melhor critério, o mais lógico, o que mais facilite a tarefa de quem escreve e de quem lê. Porque quem fala não precisa de ortografia. E é bom não esquecer que está por fazer o trabalho de alfabetização da esmagadora maioria dos cidadãos dos países lusófonos. O seu analfabetismo não os impede de falarem Português, mas impede-os de acederem à escrita e, portanto, à cultura. Sosseguem, pois, os mais alarmados porque apenas está em causa a grafia, não a fala.
Desde há um século, porém, que Portugal (que incluía então as actuais ex-colónias) e o Brasil vinham procurando uma ortografia tanto quanto possível unificada. O Novo Acordo Ortográfico veio pôr cobro à deriva em que andava a ortografia da língua. Já em 1911 Portugal procedeu à primeira grande reforma da ortografia, sem a participação do Brasil, que passou a ser adoptada pelos falantes portugueses, mas não no Brasil que, como país soberano, não a acatou. Chegou-se agora a um acordo, o melhor e o único possível. Seja bem-vindo!
O Novo Acordo privilegia o critério fonético em desfavor do etimológico. Quer isto dizer que ninguém, em Portugal, vai ser obrigado a escrever “de fato” porque em Portugal se diz “de facto”, logo, a grafia corresponde à fonética. Pela mesma razão iremos escrever atual e ótimo porque é assim que dizemos dos dois lados do Atlântico. No caso de fonética díspar, o Acordo estabelece a grafia, díspar também, segundo a norma culta lusoafricana e segundo a norma culta brasileira. No total, não chegam a 2% as palavras com diferente grafia. Porquê tanto desacordo? Fica a sensação que há muito desconhecimento do que, de facto, está consagrado nesta revisão das normas ortográficas.
Por fim, lembremos que, «sendo a língua portuguesa um instrumento de comunicação de oito países, de quatro continentes, com mais de duzentos milhões de falantes, e língua oficial ou de trabalho de mais de uma dúzia de organizações internacionais»(1), a unificação da ortografia só pode ter vantagens. E a estratégia portuguesa é a correcta porque consiste em envolver o Brasil num esforço colectivo de promoção da língua portuguesa, mas em que cada país lusófono conta o mesmo institucionalmente. Não deixa de ser interessante pretender que Portugal tenha um peso acrescido na CPLP quando tantos criticaram a desigualdade de poder dos países da União Europeia consagrada no Tratado de Lisboa.
Será de todo saudável que os portugueses tomem consciência que o eixo da lusofonia já não se centra em Lisboa, mas algures entre o Rio de Janeiro e Brasília. Só quando o tiverem compreendido, e interiorizado, estarão a contribuir, de facto, para a dignificação da sua língua.
(1) JOÃO MALACA CASTELEIRO e PEDRO DINIS CORREIA Atual – O novo acordo ortográfico. O que vai mudar na grafia do português (Lisboa, Texto Editora, 2007)
Albina de Azevedo Maia
TERRAS DO AVE, 11/07/2008
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