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Atentado de 11/2: A reportagem de Felícia Cabrita

O DIA EM QUE TIMOR VOLTOU A SANGRAR

Histórias de mal-entendidos, traições e mulheres “fatais”, que reabriu as feridas em Timor mesmo à beira de um acordo.

A reunião convocada por Ramos-Horta com todos os partidos políticos de Timor-Leste e com o primeiro-ministro, Xanana Gusmão, está na base do atentado que quase vitimou o Presidente. Um dos assuntos prioritários do encontro era descobrir uma solução para a situação dos 'peticionários'.

Em 2006, cinco centenas de militantes, liderados pelo tenente Gastão Salsinha, tinham saído dos quartéis em protesto contra a discriminação existente entre os militares oriundos da zona da resistência e os que foram submetidos à influência indonésia durante a ocupação.

Em entrevista ao SOL em Março, Ramos-Horta admitiu que esta era uma questão urgente: “Estávamos a tratar de uma amnistia que seria promulgada em Maio e que permitiria integrar os 'peticionários' de novo no exército ou, caso não quisessem voltar aos seus postos, saírem com um subsídio para reconstituir as suas vidas”.

Mas o problema mais delicado levantado na reunião – e que não reunia o consenso – dizia respeito ao major Alfredo Reinado que, ao contrário de Salsinha, era acusado de vários homicídios. Mari Alkatiri, secretário-geral da Fretilin, garantiu ao SOL que a Lei da Amnistia tinha de ser muito bem pensada. “Nunca votarei numa lei em que as pessoas que praticaram crimes de sangue possam ter um perdão e voltar a integrar as forças armadas ou a polícia sem serem submetidas a julgamento”.

Segundo Ramos-Horta, o chefe do Estado-Maior das F-FDTL (Forças de Defesa de Timor-Leste), brigadeiro-general Matan Ruak, tinha uma posição ainda mais dura e avisou-o de que Reinado e Salsinha “nunca poderiam regressar às Forças Armadas”.

Solução para Reinado

Mas Ramos-Horta encontrara uma solução conciliatória: “O major Reinado tinha um contrato por quatro anos com as F-FDTL que estava a terminar. Ele voltaria, resignava e depois saía elegantemente com uma compensação monetária. Mas penso que alguém deturpou o que se passou na reunião para os envenenar”.

Outro dos temas discutidos deixou amargos de boca a alguns dos intervenientes. Mari Alkatiri explicou ao SOL: “O meu partido sempre disse que este Governo era inconstitucional. Apesar de Xanana ter tido apenas 24% dos votos e nós 29, fez uma aliança com três partidos para formar Governo. Eu não me sentiria com legitimidade democrática para governar.” Alkatiri não fica por aqui faz a ligação ao atentado: O Presidente andava em negociações com eles e tudo parecia bem encaminhado. O Reinado não tinha razões para matar Ramos-Horta. Na reunião este assunto estava praticamente decidido e as eleições seriam em 2009. Quem tinha mais a perder?”

O resultado desta reunião, na íntegra ou deturpado, espalhou-se rapidamente nas montanhas onde se abrigavam os homens de Salsinha e de Reinado. O SOL teve acesso a todas as listagens telefónicas, que foram encontradas em dois papéis na posse de Reinado e de Leopoldino Exposto, o seu braço direito.

Feito o cruzamento das chamadas, pode concluir-se que Reinado foi traído em várias frentes e por aqueles que lhe eram mais próximos.

Um deles, Gastão Salsinha. Desde o dia da reunião no Palácio das Cinzas que o volume de chamadas feita por ele triplicou. A notícia da reunião chegara às montanhas e Salsinha – em relação a quem não havia suspeitas de crimes de sangue, ao contrário do que acontecia com Reinado -, ao saber que não iria ser integrado nas forças armadas, virou-se contra Reinado.

Preparação do golpe

Em entrevista ao SOL, Salsinha separa as águas: “Os 'peticionários' não podem ser envolvidos nas coisas de Reinado, eu nem sei qual era o plano dele quando foi a casa do Presidente”.

Nessa noite, mal dorme. Desfaz-se em contactos para a Austrália e Indonésia, mas a maioria das chamadas é para o interior do país. Várias delas para Assanku, que integraria o grupo que foi com Reinado à residência de Ramos-Horta no dia do atentado. Contactado pelo SOL, Assanku negou: “Não tenho nada a ver com isso. Trabalho numa rmpresa de segurança e não conheço ninguém ligado ao Salsinha ou ao Reinado.”

No dia 9 de Fevereiro, Assanku contacta Albino Assis, um dos militares que presta segurança na residência de Ramos-Horta. A armadilha estava montada. No dia seguinte, Assanku encontra-se com Leopoldino, braço direito de Reinado, que está na capital, e alugam dois jipes.

Na noite de 10 de Fevereiro, Reinado passa pela casa de Vítor Alves, membro do Conselho de Estado e seu pai adoptivo. Este revela: “Reinado disse-me que tinha uma reunião com Ramos-Horta e que no dia 14 haveria uma grande festa em Ermera”. O que cola com o discurso de Horta: “Na reunião antes do atentado eu estava de partida para o Brasil. Mas como estávamos quase a chegar a um acordo em relação ao Reinado, os líderes dos partidos pediram-me para vir mais cedo e anunciar o acordo antes de dia 14. E em Abril anunciaria a Lei da Amnistia que os contemplava, porque não se tratava de crimes de delito mas de uma situação política”.

Amante faz jogo duplo

Nesse dia, Ângela Pires, ex-assessora do Procurador-geral da República, regressa com Reinado a Ermera. Faz-se passar por sua assessora jurídica, mas a história amorosa entre eles é pública. Durante os dois dias que esteve com Reinado, a mulher mantém-se em ligação com Salsinha. Nos últimos dias, levantara da sua conta uma razoável quantia de dinheiro. Ramos Horta considera-a, a “grande responsável” pelo que aconteceu. “A Ângela foi sempre um travão nas negociações com Reinado. Deve ter muita gente na sua retaguarda”.

Enquanto Reinado preparava o arranque para Díli, Ameta, uma mulher com quem vivia, tenta em vão falar com ele. Por fim, deixa-lhe uma mensagem alertando-o, aparentemente, para uma cilada: “Tenha cuidado mor [amor] não é preciso ires a este seminário [reunião] se não te sentires bem. Não te esqueças de seguir o ritual daquilo que acreditamos. Amo-te sempre”. Contactada pelo SOL, a mulher (que tem uma filha de Reinado ainda bebé) garante não ter conhecimento do que se passou: “Eu era a sua mulher, era normal falarmos ao telefone ou mandar-lhe mensagens, mas nunca participei em nada. Estava em casa, cozinhava, limpava e cuidava da nossa filha”.

Nessa madrugada, pelas três da manhã, Reinado e Leopoldino, mais nove homens, rumam a Díli em jipes diferentes. A leitura das listagens telefónicas mostra que a partir desse momento estão dois chefes, mas que é Salsinha quem gere os acontecimentos. Seriam 6H17 quando Reinado entrou na casa do Presidente. Sem as cautelas próprias de quem prepara um atentado, o grupo estaciona os jipes em frente à residência. Mal saem dos carros, a sentinela aponta-lhes a arma mas é desarmado.

Sete homens de Reinado ficam na estrada, entre eles Assanku, que sempre fez a ponte com o segurança de Ramos Horta, Albino Assis.

Reinado pergunta à sentinela pelo Presidente, ao que ele responde que tinha ido “para a ginástica”.

Reinado e Leopoldino entram, com dois homens atrás. Três minutos depois ouvem-se tiros, seguidos de rajadas. A partir deste momento as versões deixam de coincidir.

O autor das mortes

Francisco Marçal, militar das F-FDTL, diz que foi o único a disparar contra Reinado e Leopoldino.

Eram 6H30 quando foi acordado por Tadeus Gabriel, um miúdo de 14 anos. Este, com grande precisão, relatou ao SOL, que se deparou com “nove homens de máscaras no rosto”. Acrescenta que só reconheceu Reinado por vê-lo na televisão.

Aí aproximou-se da tenda onde dormiam os militares Francisco Marçal e Albino Assis. Ao ouvir o grito do garoto – “Está aqui o major Reinado” -, Francisco esgueirou-se pelas traseiras. Durante 15 minutos seguiu os passos de Reinado e Leopoldino.

Depois preparou a metralhadora: “Não fiz rajada, foi tiro a tiro. Disparei um na cabeça de Leopoldino e outro na cara de Reinado”. A esta hora os telemóveis de Salsinha continuam em uso e a informação da morte de Reinado passa a circular. E a informação da morte de Reinado passa a circular. Ramos Horta, apesar de ter ouvido os tiros, dirige-se para casa. Eram quase sete da manhã quando um homem escondido entre os arbustos se ergue e o atinge por duas vezes. Os militares da sua segurança mantiveram-se no quintal. As forças internacionais não se mexem, e se não fosse a GNR e o enfermeiro do INEM que chegaram ao local uns vinte minutos depois, Ramos Horta estaria morto.

Enquanto o Presidente segue para o hospital, Assanku recolhe informações com Assis. Uma hora depois, será a vez de o carro de Xanana ser baleado a 500 metros de casa.

Mistério envolve Xanana

Também aqui as coisas correm de forma insólita. Salsinha garante que estava lá “só para lhe pregar um susto, porque a situação dos 'peticionários' nunca mais se resolvia”. Enquanto os seus homens se vão entregando, Salsinha ainda não decidiu o seu futuro: “Os meus homens agora estão divididos em quatro grupos e eu não sei se me entregue ou se lute até morrer”.

Mas foi após a morte de Reinado que os traidores se revelaram com mais desfaçatez. O telemóvel dele esteve a funcionar até ao dia 28. E Ângela e Salsinha, entre outros, mantiveram-se em conversações com os militares que o mataram.

Felícia Cabrita, em Díli

SOL, 12/04/2008
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O meu comentário sobre a cronologia da sequência dos acontecimentos está na postagem anterior.

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