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O dendê da Dadá

DEPOIS DO ORTOGRÁFICO talvez não fosse má ideia assinar um Acordo Gastronómico com o Brasil. Um acordo que pusesse o azeite de oliveira em concórdia com o azeite de dendê, ou óleo de dendê. Que dá pelo nome latino de Elaeais guineensis Jaquim, e descende de palmeira do Golfo da Guiné. Imaginem as possibilidades semânticas, fonéticas e ortográficas de jaquinzinhos fritos em óleo de Jaquim. O azeite de dendê é a base da comida baiana e os estômagos fracos e que não apreciem batuque e tambores, sol e mar, candomblé e búzios, mulatos e crioulos, devem evitar a Bahia-de-Todos-os-Santos. A todos os outros: Sorria, você está na Bahia. Sorrir é a actividade principal de Salvador. E a única e indispensável introdução à comida baiana e ao azeite de dendê tem de ser feita através do Sorriso da Dadá.

O Sorriso da Dadá é um restaurante, ou melhor, são vários restaurantes, todos da Dadá. A Dadá, que faz uma cozinha baiana à base de dendê (o óleo mais produzido e consumido no mundo), é a chamada lenda viva. A propósito de lendas, o dendezeiro foi metido dentro da paisagem natural do Brasil pelos traficantes de escravos, que começaram por plantá-lo na Bahia, o maior centro do negro comércio. E a propósito do verbo meter, se estiverem no Brasil nunca digam meter, que tem penetrantes conotações pornográficas, digam colocar.
Regressando à Dadá, de seu nome Aldacir dos Santos (só pode), ela veio do sertão vender acarajé nas ruas de Salvador, rodando a baiana, a saia branca cor de Iansã, deusa do vento que come acarajé. Dona Aldacir começou a servir sua comidinha no quintal da casa na favela do Alto das Pombas. No meio do varal de roupa estendida, hoje uma marca dos restaurantes, a Dadá sorria e servia acarajé, moqueca de camarão, bobó do dito, e quiçá a famosa mistura da Dadá, um guisado de tudo e de camarões e mexilhões que leva abacaxi, banana e gorgonzola. O segredo era o tempero da Dadá.

O restaurante mais fino da Dadá é o do Pelourinho, o Pelô, onde já comeram Hillary Clinton e o musical ministro Gil e onde ela serve umas moquecas variadas que incluem a minha favorita, siri catado com pitu. Digam comigo: "Ir na Dadá do Pelô comer uma moqueca de siri mole catado com pitu." Pornográfico. A comida é pornograficamente deliciosa. O restaurante menos fino da Dadá, e o mais verdadeiro, é o da favela, que fica no bairro da Federação. Como diz a Paula Oliveira Ribeiro, a brasileira mais portuguesa que conheço, e directora da revista "Up" (em brasileiro seria Puxa prá Cima) só mesmo o Brasil para ter um bairro chamado Federação. Graças a ela e a uma baiana, a grande (em todos sentidos) Alicia Fábio, que organiza o melhor réveillon do mundo e o melhor camarote de Carnaval baiano, o de Daniela Mercury, estreei-me no Alto das Pombas e comi a melhor comida do mundo que tenha por base o Jaquim dendê. A sala do banquete, cheia de mosquitos devoradores ao anoitecer, é ao ar livre e tem no canto uma Iemanjá rodeada de oferendas e de santos, para puxar para cima. Um deles, o esquálido e eremítico São Jerónimo, santo intelectual que nunca se esperou passear o leão ao lado da pulcritude de Iemanjá. Só o sincretismo baiano opera tais milagres.

Alicia, manobrando um charuto baiano do tamanho de avião, começou a mandar vir enquanto encomendava acarajés e alguns abará, acho, a um moço, pelo telefone. Você está com dinheiro? Então vá na não sei quantas e traga uns acarajés. É o melhor acarajé da Baía, Alicia dixit. A minha iniciação foi no acarajé da Conceição, há uns anos. Fiquei fã. A diferença entre o acarajé e o abará, feitos de miolo de feijão fradinho cozido sem casca, é que o primeiro é frito em azeite de dendê e o segundo é fervido em folha de bananeira. Sendo os dois servidos com molho de pimenta e camarão seco, ou com vatapá, caruru e salada. Veio um caldinho em casca de coco que sabia a calor e que ficou por identificar. Veio bobó de camarão, espessado com aipim, veio vatapá, veio moqueca. Pimentas várias. E a tal mistura da negra Dadá, que sorria num cartaz dos fundos mostrando o dente branco. A acompanhar, cerveja gelada e caipirinhas. No Pelô, teria pedido um puré de banana com gengibre. Dona Alicia não estava com finuras e encomendava entre dois aviões fumados a perfumar o ar livre. Mosquitos esvoaçavam como pombas no alto. Anoitecia na Baía, que todos os santos nos acudam. Por alturas do coro de mesa e do violão, dona Alicia imitava os portugueses em seu sotaque e cantava modinhas. Aí pintou um prato com negão e outro de croquetes de mandioca e coco. O negão é um bolo denso de chocolate negro e melaço, uma espécie de brigadeiro pesadão e forte, que se derrete na boca. No Pelô comi um dia uma sacanagem da Dadá, uma rosca de frutas. No Alto das Pombas, sacanagem não entrou. Não se pode ir a Salvador sem a Dadá e sem o dendê. Na rua, o menino chama um táxi e a favela não tem perigo para cliente dadá. Comida dos deuses, e não só de Iansã. Depois deste jantar, pode esticar o pernil em todos os sentidos, ou na cama, roncando, ou nos botecos, dançando. E sorria. Você está na Bahia. Acordemos pois.

Clara Ferreira Alves

Expresso, 19-04-2008

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