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Por um punhado de palavras e um falso oásis de empregos

O acordo ortográfico ganhou mais um inimigo, a APEL; e o Governo ganhou mais um crente, agora no milagre de empregar licenciados: o minstro Mariano Gago.
O processo do polémico acordo ortográfico, embora ainda no adro, vai todas as semanas juntando novas peças de antologia . Desta vez é um estudo da Associação Portuguesa de Editores e Livreiros (APEL) que, em detrimento do acordo, mostra o óbvio: que traduzir um livro em Portugal e no Brasil (já para não dizer escrevê-lo) jamais será igual, mesmo que uma qualquer lei nos dê mais três letras que afinal já todos usávamos (k, w, y) e nos obrigue a escrever "deem" em vez de "dêem" ou erradique de vez o trema da escrita.
Nesta edição publicamos um pequeno exemplo, apresentado no estudo da APEL, da tradução de um período de Hary Potter e os Talismãs da Morte, a partir do mesmo original inglês, e o resultado é elucidativo. Dois curtos exemplos. Portugal: "O barulho da porta da rua a bater ecoou escada acima e uma voz chamou-o: -Eh! Tu, rapaz!" Brasil: "O ruído da porta da frente batendo ecoou pela escada acima e uma voz gritou: -Ei, você!" Portugal: "Foi só quando o tio vociferou: 'Rapaz!' que Harry se levantou devagar [...]" Brasil: "Somente quando o tio berrou 'moleque!', Harry se levantou vagorosamente [...]". As duas traduções correspondem ao som, à "música" da fala que em cada país se tornou corrente, mesmo com palavras de igual uso, à excepção de "rapaz" ou "moleque". Neste caso, o acordo ortográfico não adiantaria nada, a não ser limpar umas letras ou uns tremas em excesso. O resto, aquilo que é já o mosto da belíssima fala que em Portugal e no Brasil, tal como nos vários países africanos irmanados na mesma base linguística, evoluiu criativamente no espaço de uma língua única ficaria e ficará. Neste combate estéril por um punhado de palavras, salve-se ao menos o bom senso.
Não é preciso nenhum acordo ortográfico para ficar espantado (e esta é já uma atitude benevolente) com as declarações do ministro do Ensino Superior à Rádio Renascença. Disse Mariano Gago que "o número de profissionais com cursos superiores que saem todos os anos para o mercado de trabalho não chega e são todos absorvidos". Isto, apesar de, estranhamente, as estatísticas do INE de Dezembro de 2007 indicarem uma taxa de desemprego de 8,1 por cento entre os adultos que têm tais habilitações. Como as reacções não se fizeram esperar, o ministério apressou-se a esclarecer que dos cerca de 39 mil diplomados que estavam inscritos nos centros de emprego em Dezembro de 2007, "apenas dois mil estavam há mais de um ano à procura do primeiro emprego". Razões para nos felicitarmos, naturalmente. Até porque Portugal precisa de mais 760 mil novos licenciados para atingir a média da OCDE e podemos continuar a fabricá-los que o mercado de trabalho logo os absorve. Certo? Nem por isso. É preciso ver que mercado de trabalho. E aí o ministro, embora num aparte menos citado, também disse: "É verdade que muitas vezes, e muitos jovens sentem isso, o primeiro emprego não é aquele que gostariam de ter." Mas pronto, sempre é um emprego. Por isso não nos admira que muitos dos jovens licenciados que conhecemos estejam a trabalhar em call-centers, em hamburguerias, pizzarias ou centrais de vendas, porque o tal emprego que "gostariam de ter" (o ministro deveria corrigir para "o tal emprego para o qual tiraram um curso") só mais tarde chegará. Quando, não se sabe nem importa. Importa, sim, é que mais uma vez estamos a "apresentar serviço". Havemos de ter os tais 760 mil licenciados, sem dúvida. Nem que depois sigam todos para caixas de supermercados.

Nuno Pacheco
Editorial do jornal PÚBLLICO, 4/04/2008

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