Avançar para o conteúdo principal

Opinião de Nuno Brederode Santos

EM MEMÓRIA DO GUARDA RICARDO
Nuno Brederode Santos
jurista
brederode@clix.pt

Ainda tenho gravada na memória a invasão, pela polícia de choque, do Hospital de Santa Maria, durante a greve de 1962. Não só a brutalidade, das coronhas e dos "casse-têtes", mas sobretudo a furiosa cegueira - excitada, ansiosa e sem critério - daqueles mastins antropomórficos, deformados nos seus chumaços pardos. Vi a pancada seca na calva de Lindley Cintra e um risco vermelho a abrir-se, para deixar correr o sangue, enquanto o corpo desabava com inesperada lentidão. Já em corrida, vi depois, sentado no muro baixo e segurando a cabeça aberta, o Luís Osvaldo Dias Amado, ensanguentado e lívido. Curiosamente, dois professores, atravessando por nós os corpos.

Após este baptismo de fogo, nunca mais encarei a violência policial com o mesmo espanto e a mesma revolta. Dias depois, quando o espancado foi o Vítor Wengorovius - de quem era, e sempre fui, grande amigo - eu já tinha uma abordagem "técnica" da ocorrência. Porque a virgindade do espanto e da revolta, essa perdera-a em Medicina, ao ver, a quatro ou cinco metros de distância, o suave martírio de Lindley Cintra.

De tal modo que, ao cabo de alguns anos, já a violência que eu sentia como verdadeiramente opressiva e humilhante nem era a da pancada. Era estarmos três ou quatro cidadãos a conversar na rua (provavelmente antes ou depois de uma manifestação), passar por nós um qualquer anónimo de gabardina e dizer, numa surdina paternalista: "Vamos a circular, que eu não quero ajuntamentos." Porque era tão óbvio de onde lhe vinha aquela estranha autoridade, que a nenhum de nós ocorria perguntar: "E quem é Você? E o que tem a ver com isso?"

Como, porém, explicar a um jovem de vinte e tal anos as razões por que a minha geração (tal como o que resta das anteriores) trouxe para o 25 de Abril estes fantasmas? Como dizer-lhe que não se pode excluir que um pouco da memória do outro lado - o dos mastins do capitão Maltez e dos anónimos da gabardina - possa ter perdurado, não nos homens (que já não são os mesmos), mas nos pequenos atavismos das instituições? Não é fácil, se não fizermos, com a geração dele, o esforço que lhe exigimos para com a nossa. Claro que ele conhece um pouco da brutalidade policial. Mas nada que se compare à da "democrática" polícia francesa que eu vi actuar nesses anos sessenta. E também conhece o laxismo policial. Mas nada que se compare com a timorata abstenção policial, que eu vi em Oslo nos anos noventa, perante motards da extrema-direita, armados de cacetes e correntes de bicicleta. Ele compreende tudo isso. Mas não percebe que a polícia de um Estado de direito não cumpra a lei ou que, quando a cumpre, arroste com as culpas da lei que cumpre. Se a lei está mal, mudem-na. E tem razão. Ou, pelo menos, mais razão do que nós.

Não há Estado em que os agentes da polícia sejam os sages do reino. (Não mandem, por exemplo, polícias de giro apurar quantas camionetas saem de um sítio à mesma hora, por muito logísticas que sejam as preocupações de quem ordena - porque uma vez irão perguntar ao sindicato, e dá inquérito, e, na seguinte, vão perguntar às escolas, e dá inquérito). O exercício da função policial - o exercício de toda a função repressiva do Estado - terá sempre, para ser legítimo e aceitável, de mover-se entre a insuficiência e o excesso, entre o laxismo e a brutalidade. Mas há Estados de direito, como o nosso, em que um qualquer D.L. 406/74, de 29 de Agosto, ainda se permite regulamentar (e condiconar) o "livre exercício", pelos cidadãos, do direito de "se reunirem pacificamente em "lugares (…) particulares, independentemente de autorizações, para fins não contrários (…) à ordem e à tranquilidade públicas". Por muito que a conjuntura histórica possa ter justificado este parreco, digam--me lá o que é que isto faz na nossa ordem jurídica. E contudo, quando se trata dos direitos de reunião e manifestação, este é um diploma que as autoridades - e a polícia também - devem fazer acatar. Mas nele não estão só envolvidos os três maiores partidos do regime (sendo que o Bloco apenas não existia e o CDS até se queixava de não estar no Governo). Estamos todos os que, estando à data de boa saúde mental, deixámos correr trinta e quatro anos sem balbuciar uma estranheza. Fica à consciência dos deputados da Nação. Que devem estar mais próximos da sageza de Estado do que o tal polícia de giro.

DN Online, 9/3/2008

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Governo PS dos Açores suspendeu a ADD!!

O governo do Partido Socialista dos Açores suspendeu o modelo de avaliação do desempenho de professores imposto pela equipa da ministra Maria de Lurdes Rodrigues, substituindo-o por um modelo simplificado de avaliação. Mais: vai 'reconstruir' a carreira dos docentes contando também para a progressão da carreira os dois anos e quatro meses congelados pela 'reforma' do PM Sócrates.. A questão que se impõe agora é a seguinte: A República Portuguesa é ou não um Estado Unitário?!

Língua materna como língua de instrução: estupidez e teimosia do ME timorense

O melhor caminho para desenvolver as línguas maternas timorenses - vulgo línguas nacionais - é constituir equipas de estudiosos falantes nativos de cada uma das línguas (com a ajuda e colaboração de linguistas) para as estudar, analisar e estruturar a sua morfologia e sintaxe, e posterior aprovação da sua norma ortográfica pelo Parlamento Nacional a fim de haver uniformização no seu uso e ensino, evitando que uma mesma palavra tenha três ou quatro grafias diferentes. A política educativa deve estar integrada na estratégia de defesa e segurança nacional. Não deve servir, nunca, para abrir brechas na segurança e unidade do país. A educação não se limita apenas a ensinar a ler e a escrever ("literacia") e a ensinar efectuar operações aritméticas ("numeracia"). Num país multilingue - como o nosso - e de tradição oral é imperativo haver uma língua de comunicação comum a todos os falantes das cerca de uma vintena de línguas nacionais. Neste momento, o tétum já preenche es