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Lévi-Strauss

"Odeio as viagens e os exploradores. E aqui estou eu disposto a relatar as minhas expedições. Mas quanto tempo para me decidir!" Com esta "frase falhada" começa Tristes Trópicos, um grande e melancólico livro do século XX. O seu autor, enquanto espera por Novembro para fazer cem anos, ouve Wagner, lê Proust, olha os quadros de Poussin e lembra a selva amazónica. Para que esta data seja mais do que uma data, a colecção Pléiade acaba de acolher Claude Lévi-Strauss, publicando num volume sete (sete é um número mágico!) dos seus livros maiores. Entregue à mediocridade agitada do tempo, simbolizada pela estridente dupla aventureiro-cantora que lhe preside, a França, já sem génios nem heróis, atira-se a Lévi-Strauss como um náufrago à sua tábua de salvação. Em frente da noite densa que avança baixa e rasante, o grande antropólogo-escritor é um último clarão crepuscular de grandeza. Aquele que tanto escreveu sobre mitos e mitologias, é, agora que a longevidade o sagrou, um mito, sobre o qual correm rios de tinta, acendem-se ecrãs, desenham-se capas, inventam-se títulos. O "Nouvel Observateur" proclama "O Último dos Gigantes" e defende que a sua obra perturbou a nossa visão do mundo. "Le Point" exclama "Um Génio Francês - O Homem que Revolucionou o Pensamento". O "Magazine Littéraire" chama-lhe "O Pensador do Século".

Tenho um fascínio frequente por Lévi-Strauss. Acho que alguns dos raios que a sua obra emite atravessam o centro do espelho onde nos vemos; e nas suas questões estão os nós da corda que nos ata ao tempo. Sob a influência da geologia e da linguística, mas também na descendência de Marx e de Freud, ele pensa que o visível pode ser explicado pelo oculto. Nestes dias de tributo, tenho passado horas de encantamento a ler sobre ele e a pensar com ele. O estruturalismo e o relativismo, a crise do sujeito, a nova querela dos universais, o anti-humanismo e o regresso a uma visão do homem como ser vivente e não dono da criação, a continuidade do pensamento selvagem e do pensamento científico, a função individual e colectiva do mito, a relação entre o sensível e o inteligível, a reivindicação de Rousseau, a ligação aos pensamentos de Foucault, Barthes e Lacan, mas também de Levinas e Heidegger, a atracção pelo budismo, os efeitos nas ciências sociais e cognitivas - eis alguns dos tópicos suscitados por esta obra una e diversa. Homem independente, inesperado e controverso, grande estilista da língua francesa, nos seus livros tudo converge: antropologia, filosofia, arte, literatura, música, ciências humanas, ciências exactas.

Num ensaio muito pessoal (Lévi-Strauss ou o Novo Festim de Esopo), Octavio Paz descodifica e interroga este pensamento tão pessimista e inquietante, dizendo-o "não uma dissolução da razão no inconsciente mas uma busca da racionalidade do inconsciente: um super-racionalismo". E George Steiner, em A Nostalgia do Absoluto, compõe com Lévi-Strauss, Marx e Freud um triângulo de judeus - "messias seculares" que substituíram as velhas teologias por novas mitologias. E mostra que o pessimismo de Strauss assenta numa outra versão do pecado original: a ruptura entre natureza e cultura, a quebra da aliança do homem com a criação. É esta, aliás, a fonte da força trágica desta obra.

Num arco de cem anos, Lévi-Strauss ergueu com o pensamento um céu que faz dele "um astrónomo das constelações humanas". Ele é aquele que não cessa de nos lembrar que os astros nasceram antes de o homem nascer e morrerão depois de ele morrer...

José Manuel dos Santos

Expresso, 2/06/2008

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