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Timor: pós-eleições 1

Ramos-Horta, presidente da República de Timor-Leste
"Alkatiri não pôs de lado uma aliança com o CNRT"
Jordão Henrique/AP

Com nenhum partido a ter uma vitória clara nas eleições legislativas em Timor, cabe ao presidente o papel essencial de viabilizar o próximo governo. Uma entrevista longa e surpreendente, em que Ramos-Horta fala dos bastidores das negociações com a Fretilin e em que conta ainda a sua versão sobre a crise de 2006, ilibando Rogério Lobato. E revelando onde se encontra, neste momento, o líder rebelde Reinado: exactamente onde menos se espera
Entrevista de Micael Pereira, enviado espeicial a Timor-Leste

Quem é que sai derrotado destas eleições?
Em primeiro lugar, é óbvio que é a Fretilin (que perde), em termos aritméticos. Em 2001 era o partido dominante, a uma grande distância, com 57 por cento dos votos. Se nas presidenciais se podia desculpar que, pela minha relação com a Fretilin em geral, tive muitos milhares de militantes a votarem em mim, já nas legislativas se esperava – e eu próprio esperava – que a Fretilin poderia subir muito para cima de 30 por cento. Seja como for, a Fretilin tem de fazer as contas à vida, porque um partido que passa de 57 por cento para menos de 30 por cento, de uma eleição para a outra, é um caso para preocupação. Sobretudo tendo em conta que é um partido com mais de 30 anos de história e que não precisa de dar a conhecer o seu nome e a sua bandeira. Veja o exemplo do ANC na África do Sul ou mesmo da Frelimo em Moçambique, que foram ganhando as eleições sempre com larga margem. Com a sua longa história, a Fretilin caiu logo no primeiro teste.

Mas a Fretilin tem mais votos do que o CNRT. Xanana Gusmão não sai também derrotado?
Xanana sobrestimou a sua autoridade e o seu carisma. Mas eu já dizia, muito antes das eleições, que Xanana se distanciou muito do povo ao longo destes cinco anos. Ele raramente ia para os distritos. Eu disse isso aos meus conselheiros e aos conselheiros de Xanana. Ele foi alertado.

Acha que os timorenses demonstraram que já não reconhecem Xanana como pai?
Ele continua ainda a sê-lo, mas há dois factores que feriram o seu estatuto. Primeiro porque se distanciou pela ausência. Como presidente da República e líder que ele era, saído do povo e tendo vivido com o povo ao longo de duas décadas, devia ter continuado a estar com o povo. Ele talvez não se lembre mas eu lembro-me de dizer a vários colaboradores nestes dias antes das eleições sobre uma conversa telefónica em 1999 em que lhe falei: «Irmão, tu deves concentrar-te na política interna do país. É fundamental promoveres a reconciliação, a unidade, a paz e a estabilidade. Deixa para mim a política externa». Mas ao longo de cinco anos, Xanana fez muitas viagens ao exterior e muitas delas totalmente desnecessárias e absurdas. Na altura critiquei-o. Distanciou-se muito.

Parece-lhe que o povo está a castigá-lo por ter sido responsável, em parte, pela crise no ano passado?
O segundo factor é precisamente esse: o papel de Xanana durante a crise. Por várias razões, mas fundamentalmente por questões de saúde, no pior momento da crise esteve barricado em Balibar sem ser visto. Não se via a figura de Xanana na televisão ou nas ruas de Díli. Assim como nenhum outro líder. Eu era a única pessoa que todos os dias estava nos bairros, nos hospitais, nalguns distritos, sobretudo nos distritos críticos da fronteira, e ia a televisão serenar o povo.
Xanana também não se assumiu na altura como comandante supremo das forças armadas. Assumiu-se no final de Maio, quando fez uma declaração. Mas devemos perdoar Xanana, porque ele estava fisicamente incapacitado. Estava doente com dores horríveis. Esteve uma semana sem vir ao gabinete e depois, quando teve de vir, veio apoiado e a gemer de dor. No fim, a Fretilin e Xanana foram ambos penalizados pelo eleitorado.

Recolocando a pergunta inicial: e quem sai vitorioso com estes resultados? O PSD/ASDT e o PD.
Comparo com as últimas eleições de 2001: o PD subiu e, juntamente com o PSD/ASDT, ultrapassam os votos da Fretilin. E estamos a falar de partidos sem grandes recursos. A coligação PSD/ASDT não tinha dinheiro. Estavam bastante deficitários nas duas campanhas, presidenciais e legislativas. Estes três partidos são os vencedores, apesar de não se poder minimizar a prestação do CNRT. Pese embora a figura de Xanana, o partido enquanto tal tinha dois meses de organização. Uma coisa é a figura de Xanana, outra coisa é a necessidade de organização das bases. Em dois meses, terem conseguido mais de 20 por cento com uma organização inexistente não é mau.

Com a pulverização dos votos por vários partidos, o futuro do país vai estar agora nas suas mãos. Já começou a reunir com os líderes políticos?
Recebi um SMS anónimo que diz mais ou menos: «Nesta jogada política, o irmão foi o único que soube estar acima de tudo e venceu. Parabéns, parabéns, parabéns. E agora precisamos mais do que nunca de si».

O futuro, portanto, está nas suas mãos.
Em parte. Vou tentar negociar com os partidos. Comecei ontem com o ASDT/PSD, amanhã (quinta-feira, 5 de Julho) vou estar com a liderança da Fretilin e na sexta-feira vou estar com os outros partidos. Não vou minimizar os partidos pequenos. Vamos ver se encontramos uma solução ideal.

E qual é a solução ideal?
Ainda não sei. Mas tem de ser uma solução que una o país, que o leste e o oeste se sintam representados e não defraudados. Tenho de ver o resultado final para analisar os votos em cada distrito e ter uma interpretação do significado de todos esses votos. Não vai ser fácil fazer a ponte entre a Fretilin e os outros partidos.

Está a dizer que vai tentar um governo que inclua a Fretilin.
Sim. A Fretilin parece ser o partido mais votado, mas não significa que reúna a maioria parlamentar necessária para uma acção governativa estável. E a constituição impõe-me a obrigação de ajudar a criar condições para uma governação estável, que tem de ter a confiança dos deputados eleitos. Se se sabe, logo à partida, que o partido mais votado não consegue reunir uma maioria parlamentar para fazer passar o programa de governo, pergunto se vale a pena sequer tentar ou se é preferível encontrar uma forma em que esse partido e outros se coliguem ou encontrem uma solução de compromisso em termos de programa e distribuição de pastas. E a distribuição de pastas não tem de ser apenas ao nível de governo, pode ser feita ao nível de autoridades regionais e distritais e de algumas outras iniciativas não previstas que podem encaixar outros elementos. Por exemplo, a minha iniciativa para uma task force de luta contra a pobreza. Alguns elementos que não vão para o governo podem ir para esses lugares.

Estaria disposto a chamar elementos da Fretilin para esses lugares?
Exacto. Quero, por exemplo, criar um novo órgão, uma alta autoridade para a luta contra a corrupção, que tem de ter alguém com o estatuto de ministro. Tem de ser um órgão com um estatuto independente, para coordenar as actividades dos outros órgãos que lidam com a corrupção – parlamento, provedoria de justiça e direitos humanos, Procuradoria-Geral da República, etc. Haverá uma espécie de super-ministro a coordenar o trabalho. Chamar-se-á Alta-Autoridade para a Boa Governação. Terei ainda outras iniciativas deste género. Com tudo isto, em conjunto com o governo e o parlamento, podemos encaixar todos com a legitimidade dada pelas eleições.

A Fretilin tem sempre tomado uma atitude de querer governar sozinha. Não tem estado muito aberta a coligações, apesar de se falar na última semana de uma eventual aproximação ao Partido Democrático (PD). Não lhe parece que a Fretilin pode optar por avançar para um governo minoritário e passar a batata quente para as suas mãos? Nesse cenário, os apoiantes do partido mais votado poderiam considerar ilegítima uma decisão sua que o afastasse do poder.
A constituição é clara. Não há ambiguidade quando diz que o primeiro-ministro é proposto pelo partido mais votado ou pela aliança com maioria parlamentar. E deixa ao presidente da República a decisão de qual destas soluções melhor serve os interesses do país. Vou aceitar a proposta de um primeiro-ministro pelo partido mais votado ou vou convidar a aliança – se ela existir – com maioria parlamentar? Ou tento unir as duas coisas?

É possível unir as duas coisas quando a relação política e pessoal entre Alkatiri e Xanana se tornou tão azeda no último ano? Poderá haver tolerância de ambas as partes para um governo de unidade nacional?
Tem de haver, porque o interesse nacional, a paz, a estabilidade o exigem. Já falei ao telefone com o dr. Alkatiri.

E que conclusões tirou desse telefonema com Alkatiri?
Confrontada com a realidade dos resultados eleitorais, a Fretilin está na disposição de dialogar com os outros partidos para uma coligação.

Uma coligação que inclua o CNRT?
O dr. Alkatiri não pôs de lado uma aliança com o CNRT. Ele tem estado disposto a contemplar essa possibilidade. E isso não é de agora, já é de algum tempo.

Ele diz isso nos bastidores?
Sim. Temos falado disso. E Xanana tem uma grande qualidade humana: não guarda rancor. Ele disse-me: «Se perder, vou para a oposição. Porque o país precisa de oposições fortes». Não será o primeiro herói nacional a fazê-lo.

Ainda há a hipótese de o CNRT passar para a oposição?
Sim.

Num cenário em que Xanana aceitasse ir para a oposição, qual seria a composição do governo? Quem seria o primeiro-ministro?
À partida, o primeiro-ministro seria indigitado pela Fretilin. Quem, não sei.

Que aliados teria a Fretilin?
Seria responsabilidade da Fretilin fazer as concessões necessárias para ter apoio no parlamento. Concessões aos outros partidos.

Mário Carrascalão disse-lhe ontem que estaria disponível para uma situação dessas?
Neste momento, os outros partidos estão apenas a contemplar a possibilidade prevista na constituição de a aliança com maioria parlamentar ir para o governo. Não estão dispostos ainda, nesta altura, a ir para a oposição. A interpretação que fazem é que eles podem passar a governar.

Mas sem a Fretilin.
Sim. Com a Fretilin na oposição.

Portanto, uma coligação liderada pela Fretilin parece estar afastada.
Sim. Agora, o outro cenário é que os outros quatro grandes partidos (CNRT, ASDT, PSD e PD) se coliguem para obter a maioria parlamentar.

Está disposto, então, a viabilizar esse governo de aliança sem a Fretilin?
Qualquer decisão que tomar agora vai ter implicações no futuro de Timor. Não quero contemplar o pior cenário, que seria dissolver o parlamento e convocar novas eleições. Creio que é possível reunir as várias forças políticas e encontrar uma solução de compromisso que beneficie todos eles e sobretudo proteja muito melhor os interesses do país. Não vou poupar esforços nestes dias para criar o clima (de diálogo) e também para explorar ideias. Temos de ter criatividade. O país está a atravessar um teste de liderança. Eu já dizia ontem ao PSD/ASDT que num cenário em que os quatro partidos (com CNRT e PD) formem governo, devem ter consciência que não pode ser uma aliança de uma semana, como acontece muitas vezes em Timor. Têm de entender que é uma aliança para cinco anos. Têm de conviver 24 horas por dia durante 365 dias e multiplicar isso por cinco anos.

O PSD/ASDT e o PD têm uma pedra no sapato com algumas figuras da Fretilin Mudança que se juntaram ao CNRT. Também isso será difícil de resolver. Um governo liderado por Xanana Gusmão será viável? Terá capacidade de execução?
Eu creio que Xanana é suficientemente pragmático. Já não é o Xanana que ganhou as eleições presidenciais de 2002 com mais de 80 por cento dos votos, com o boicote da Fretilin. Xanana obteve menos de 30 por cento dos votos. Se for liderar o governo, ele tem consciência de que vai ter de fazer uso não da autoridade do passado, do mato e da guerrilha, mas do seu charme para manter a unidade do governo. E ele tem condições de o fazer.

Estas eleições, que criam uma situação de impasse, são capazes de aliviar a crise social do país e a onda de violência que começou no ano passado?
A situação tem estado calma ao longo dos últimos meses, com apenas alguns incidentes.

Mas é uma paz frágil.
Sim, mas a paz foi sempre frágil. Em 2001, 2002, 2003, no parlamento, nos jornais, fui dizendo: «A paz que vivemos hoje é real, mas frágil. Porque frágeis são as instituições e as feridas estão frescas. Sejamos prudentes nos nossos discursos e nas nossas acções».
Volto à questão: não haverá o risco, caso a Fretilin se recuse a ter uma participação subalterna num governo do CNRT, de haver um sentimento de ilegitimidade por parte dos militantes pelo facto de o seu partido ficar afastado do poder, apesar de ser mais o mais votado?
Fazendo as contas, as bases entenderão que a soma dos votos no país que não são da Fretilin são esmagadoramente superiores aos do seu partido. Essa é a realidade. Têm o dobro dos votos. Se a Fretilin, suponhamos, recebeu 100 mil votos e a oposição recebeu 300 mil, quem é que deve governar?

Como é que vê uma atitude em que Mari Alkatiri insista em formar governo, mesmo ficando em minoria no parlamento?
Eu estou a aguardar a opinião técnica de juristas e constitucionalistas sobre o que diz a constituição e todas as suas implicações. Com base nessas opiniões e com o imperativo de respeitar a opinião da maioria expressa nos votos registados, tomarei uma decisão. Se um grupo de partidos se aliar, tiver a maioria parlamentar e garantir a estabilidade para Timor, tem legitimidade para governar. Se por outro lado, a Fretilin consegue garantir que um ou mais partidos, embora não querendo fazer parte do governo, lhe vão dar o benefício da dúvida e votar o programa de governo, também é uma possibilidade. Mas cabe à Fretilin mostrar capacidade de liderança em negociar com os irmãos dos outros partidos.
Quais são as medidas mais urgentes que o novo governo deve tomar?
Até ao fim do ano podemos viver apenas com os duodécimos do orçamento anterior. Entretanto, vai ser preciso preparar o orçamento de 2008, alterando o calendário orçamental, que em vez de ir de Julho a Junho passará a ir de Janeiro a Dezembro. Do meu ponto de vista, vai ter de incluir uma vertente grande de luta contra a pobreza. Toda a gente está de acordo que temos de lutar contra a problema, embora possamos não estar de acordo em como fazê-lo.
Foi muito criticada a sua ideia de dar dinheiro aos pobres.
Os que a criticam vêm de uma escola clássica já desacreditada. O próprio Banco Mundial e o FMI, onde estão alguns dos melhores economistas do mundo e a quem eu recorro a pedir opinião, estão completamente de acordo comigo. Uma das medidas é transferência directa de dinheiro. É uma questão não só justa e humana, mas também uma questão económica: se transfiro 50 milhões de dólares para a população, eu estou a injectar 50 milhões de dólares na economia local. Os pobres não usam o dinheiro para comprar batons e perfumes ou para ir de férias a Bali. Vão gastar o dinheiro na aldeia, a comprar legumes, ovos, frangos ou roupa para as crianças irem à escola. E assim o dinheiro circula no país.
Foram feitas muitas promessas durante a campanha. Por si também, na campanha das eleições presidenciais. A expectativa do povo é alta. Disseram-me que foi executado menos de metade do orçamento para 2006/2007.
Se falar com Estanislau da Silva (actual primeiro-ministro) verá que ele lhe dará números completamente diferentes. Segundo ele, com as reformas que o segundo governo constitucional introduziu, a execução orçamental até Maio já estava acima do ano anterior, com mais de 70 por cento.
O episódio que deu origem à crise, com a expulsão dos peticionários das forças armadas, está ainda por resolver. Já passou mais de um ano. Não há uma intransigência do brigadeiro Matan Ruak em reintegrá-los nas fileiras das F-FDTL? Como é que se vai resolver o problema?
Ao longo dos últimos meses, devotei alguma atenção à questão dos peticionários e testei algumas ideias com o comando das F-FDTL e com os peticionários. Aguardo o resultado das eleições para confrontar os partidos políticos e o novo governo com essas ideias. O comando das F-FDTL endossou as minhas recomendações. Os peticionários serão tratados caso a caso. Não são um exército alternativo nem um grupo organizado. Estão espalhados pelos distritos, alguns deles estão a trabalhar. Quem quiser regressar às forças armadas tem de meter os papéis e requerer o reingresso com base na nova lei de recrutamento que foi aprovada no parlamento. Não havia lei de recrutamento nem regulamento disciplinar no exército. Durante o meu mandato (como primeiro-ministro), fiz aprovar cinco peças de legislação que não existiam e que são vitais para normalizar a vida nas F-FDTL. Os que não quiserem regressar terão um pacote de incentivos equivalente a três anos de vencimento. Muitos peticionários estão interessados nisso. O tenente Gastão Salsinha ainda afirma que é comandante dos peticionários, mas a maioria já não liga ao que diz. Ele continua a exigir o reingresso de todos, mas isso não vai acontecer. A maioria não quer regressar. Muitos deles não gostaram da vida no exército. Têm de acordar às quatro da manhã, trabalham ao fim-de-semana e não ganham tão bem quanto isso. Ao mesmo tempo, vamos avançar com a reforma das forças armadas. O comando da F-FDTL é o primeiro a reconhecer essa necessidade.
Disse, em entrevista à Visão, que não vai promulgar a lei da amnistia tal como ela foi aprovada no parlamento mas está disponível para aprová-la com alterações. Pergunto-lhe se isso é correcto depois de um relatório da ONU ter recomendado que as pessoas que foram responsáveis pela crise no ano passado sejam criminalmente acusadas e condenadas. Uma amnistia não irá alimentar um sentimento de impunidade?
Enviei hoje a lei da amnistia para o Tribunal de Recurso, solicitando um parecer em relação a algumas dúvidas que tenho e sobre a sua constitucionalidade. Está mal feita e tem muitas lacunas. Não estou contra uma lei da amnistia, mas tem de ser muito mais abrangente no tempo. Por que é que não vai para trás, até 1974 e 1975? A lei deve ter conta a nossa história recente, destes últimos 30 anos. E deve ter em conta a realidade que vivemos em Timor-Leste hoje, em que há muitas feridas ainda por sarar que vêm do passado, novas feridas abertas e uma fragilidade das instituições. O país consegue aguentar emocional e politicamente com toda um conjunto de julgamentos e prisões das mais variadas pessoas, que directa ou indirectamente estiveram implicadas na crise do ano passado? O Rogério Lobato está na prisão de Bécora não porque matou alguém, mas porque ordenou a distribuição de armas. Pelas mesmas razões que Rogério Lobato está preso, podiam estar também outras pessoas na prisão que ordenaram ou fecharam os olhos à distribuição de armas. Eu disse em tribunal – ofereci-me para depor e isso custou-me votos – que não acreditava, e não acredito, que quer Mari Alkatiri (supondo que ele soubesse) quer Rogério Lobato o fizessem especificamente para assassinar opositores da Fretilin, como se alega. Acredito sim que houve a inclusão da polícia na manifestação do dia 28 de Abril e nos dias a seguir. Díli ficou desguarnecida e Rogério Lobato teria armado veteranos leais à Fretilin para assegurar a defesa da cidade e dar apoio às F-FDTL. As F-FDTL, solicitadas a fazer a defesa da cidade, substituindo a polícia, ficaram demasiado dispersas e decidiram também chamar voluntários ex-combatentes, uns 200, a quem distribuiu armas. Constitui isso um crime ou é uma reacção instintiva de pessoas patrióticas que, tendo feito uma análise da situação, decidiram que o estado tem de ser defendido?
Nessa lógica, a responsabilidade de Rogério Lobato é igual à do brigadeiro Matan Ruak?
É igual à de Ruak e à do dr. Alkatiri, que não deixava de ser o primeiro-ministro e foi quem ordenou a vinda das forças armadas. Pergunto: serei eu, José Ramos-Horta, cidadão deste país, retirando o estatuto de presidente da República, a contribuir directa ou indirectamente para que um patriota herói deste país, com 24 anos de luta nos ombros dele, vá para a prisão de Bécora por ter distribuído armas a ex-combatentes?
Está a falar do brigadeiro Matan Ruak. Sim, estou a falar de Ruak. Eu não serei essa pessoa. Quando falamos de justiça, a justiça não pode estar dissociada da realidade social e política, do contexto em que as coisas decorreram. A justiça não é tão cega quanto isso. Ela tem de analisar os eventos que levaram alguém a tomar determinadas decisões. Foi o que fez Mandela na África do Sul. Por que é que optaram por uma comissão de verdade e reconciliação em vez de estabelecerem um tribunal para julgar todos os implicados nas décadas de regime do Apartheid? Por que é que os chilenos, no período pós-Pinochet, não levaram todos para a prisão? Porque, quer na África do Sul quer no Chile, recearam a fragilidade da nova democracia e das novas instituições e preferiram acalmar o país.
O major Reinado também cai nesse saco?
O caso Reinado é simplesmente uma consequência desta situação. Ele é uma pequena peça na crise.
Há evidências claras que levam a acreditar que houve o início de uma guerra civil entre o dia 23 e 25 de Maio de 2006. E o major Reinado seria o líder de um ataque a Díli e às posições das F-FDTL.
Eu lidei com o major Alfredo Reinado. Nunca ele ou outros militares tiveram intenção ou capacidade, no plano operacional e muito menos no plano político, para desencadear uma guerra contra as F-FDTL. Não há nenhuma outra razão que explique, até agora, o ataque de peticionários armados e o ataque do major Reinado em simultâneo a várias posições das F-FDTL em Díli. Quem esteve em Tacitolu (quartel-general das F-FDTL) foram alguns elementos da polícia e os elementos do Rai-Los. Rai-Los diz que estava a tentar controlar esses elementos da polícia. É o tal problema de as pessoas tomarem medidas e fazerem coisas com base em rumores e histórias que se contam. Enquanto alguns idiotas davam ordens a outros idiotas para se armarem e entrincheirarem nas montanhas, para travar uma possível invasão de Díli pelos peticionários, eu estava em Gleno, com os peticionários, que não tinham armas. Estavam descansados e tranquilos, apenas aflitos por não terem comida, enquanto em Díli algumas pessoas diziam: «Os peticionários vêm aí».
Foi uma coincidência os ataques em simultâneo?
O ataque do major Alfredo Reinado a Fatuhai foi acidental. Ele veio a Fatuhai para ver a situação, contra o acordo que fez comigo. Eu estava em vaivém. Tinha estado horas antes com o Reinado, com o major Tara, com o major Marcos Tilman, todos eles, para promover um grande diálogo em Dare, no antigo seminário. Fui a Ailéu, acompanhado de dois majores americanos da embaixada dos EUA, e Reinado garantiu-me que estava interessado no diálogo e que não ia sair dali. Vim a Díli e no dia seguinte fui a Gleno, onde falei com o tenente Salsinha, com o Tara e o Marcos, para ultimar os preparativos do encontro em Dare. Quando me ia sentar, veio o telefonema de Díli a dizer que havia tiroteio em Fatuhai. Liguei imediatamente ao Reinado, que atendeu no meio do tiroteio. Perguntei-lhe: «O que é que você está a fazer aí?» Ele respondeu-me: «Vim ver a minha gente». Disse-lhe: «Que gente? O que é que você me prometeu ontem?» O idiota tinha decidido sair de Ailéu. Entretanto, um grupo das F-FDTL tinha directivas para vir estabelecer um posto de observação conjunto com a PNTL (polícia), para evitar acusações mútuas. Paulo Martins (comandante-geral da polícia) tinha ficado de aparecer e não apareceu. No lugar dele apareceu o major Reinado.
E o ataque, também nessa altura, à casa do brigadeiro Matan Ruak?
O Paulo Martins jura-me que não teve nada a ver com esse assunto. Eu acredito, ele não estava na zona. E o ataque não foi contra a casa de Matan Ruak, porque depois fui lá. Havia poucas balas e achei estranho. Foi também um acidente. Os militares que guardavam a casa viram um movimento suspeito lá em cima (nas colinas) e começaram a disparar. Se queriam atacar Ruak não o fariam em pleno dia. Houve muitas coisas que aconteceram de forma desorganizada. Uma estupidez. O mais caricato foi essa história do Rai-los ter ido a Tacitolu porque tinha ouvido o boato sobre os peticionários, quando eu fui informando Alkatiri de todos os movimentos destes grupos, porque estava em diálogo com eles. Não tinham comida sequer. Só veio meia dúzia deles, os mais malandros. Esses meteram-se em problemas. Fui serenamente para Gleno, antes de estarem cá os australianos, num carro com um motorista e um segurança, enquanto em Díli diziam que os peticionários iam atacar, mas eu não vi nada disso.
Mas em Díli há muita gente que continua a ter medo do major Reinado. Ele não se tornou mais forte como herói depois de ter escapado ao cerco dos australianos e pelo facto de ainda continuar a monte?
Se o Reinado tivesse o apoio que as pessoas pensam que ele tem, quando se deu o assalto a Same (onde ele estava) teria acontecido uma insurreição em Same, em Ainaro, em Ermera, em todo o lado. E não houve uma única reacção nesses distritos. Houve apenas alguns distúrbios em Díli, em Banana Road.
A polícia diz que houve caos por toda a cidade. Barricaram a Banana Road e a Estrada de Comoro.
O apoio dele não é assim tanto. O tipo é muito esperto a falar mas não tem substância nenhuma. E com as eleições presidenciais e legislativas, perdeu ainda mais suporte. O bispo Basílio do Nascimento, com quem falei, não está nada satisfeito com a postura dele. Os homens que o acompanhavam já não estão com ele. Apenas três ou quatro. Falei há duas semanas com os verdadeiros combatentes, que aceitam vir a Díli para um diálogo.
Considera o caso Reinado resolvido, portanto?
Ele não vai causar problemas. Como presidente, não quero que nenhum timorense tenha de estar a viver em esconderijos. O Reinado sabe e eu sei onde muitas vezes ele pernoita. Não é assim tão difícil. Xanana, em 1992, foi capturado pelas forças indonésias precisamente porque vinha demasiadas vezes a Díli. Uma vez, quando finalmente se quis [ir] embora não tinha motorista nem ninguém para o levar e foi apanhado. O L-7 e o Matan Ruak nunca vieram a Díli. Por isso nunca foram apanhados.
Reinado costuma vir a Díli?
O Alfredo gosta de estar na cidade. Não consegue estar nas montanhas. É um bon-vivant (risos). Eu sei de sítios onde ele passou noites. Há duas semanas, eu sabia onde ele estava. Os miúdos do bairro que dantes o apoiavam alertaram-me. Disseram-me: «Mande as forças que ele está aqui». E eu disse: «Não, deixem lá. Estamos num processo de diálogo, não quero violência. Não quero nenhum timorense ferido ou morto». Eu disse a Reinado: «Circulem à vontade, mas sem armas. Se andarem com armas, serão apanhados». Desde que ele não cause problemas a ninguém e não desafie o estado, porquê tanta pressa? Vamos continuar este processo com paciência chinesa.
E sabe onde é que ele está agora?
Está em Díli. Só espero que não vá a festas.

Publicado quarta-feira, 4 de Julho de 2007 15:20 por Expresso Multimedia

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