Duas tragédias naturais, dois actos de Deus dir-se-ia em inglês, assolaram a Ásia com intervalo de dias. Um ciclone fustigou o sudeste da Birmânia deixando cerca de 100 mil mortos e um terramoto assolou a província de Sichuan no centro da China matando talvez mais pessoas ainda. Para lá de compaixão pela dor de tanta gente a comparação das reacções das autoridades birmanesas e chinesas às duas catástrofes é instrutiva.
Nem a China nem a Birmânia são democracias, isto é, em nenhum dos dois países estão estabelecidos mecanismos institucionais para controlo dos governantes pelos governados tais como eleições livres, tribunais independentes, respeito pelos direitos civis e políticos de cada um - mas há graduações. Na Birmânia, uma ditadura militar brutal assente em economia rudimentar de petróleo, matérias-primas e droga, explora, oprime e sufoca uma população miserável, fechada ao resto mundo. Na China, uma ditadura burocrática consegue fazer coincidir um dos capitalismos mais vigorosos do mundo - a poucas décadas de suplantar os Estados Unidos - e regime político de partido único, para contentamento quase geral da população cujo bem-estar material tem crescido nos últimos anos como os bambus proverbiais.
Há outras diferenças que saltaram agora claramente à vista. Os generais birmaneses e a sua cadeia de comando não informaram o povo da chegada iminente do ciclone, aumentando assim o número de mortos da primeira leva. Não puseram logo a tropa a prestar socorros (foram monges budistas que tiraram árvores caídas das ruas); começaram por recusar ajuda estrangeira para depois autorizarem um pinga-pinga insuficiente de material, pessoal de fora foi proibido de entrar; por fim parte da ajuda está a ser pilhada pelas próprias autoridades. A China, desde o Presidente da República e o primeiro-ministro até aos militares mandados para Sichuan, aos bombeiros e aos médicos e paramédicos, passando pela informação, reagiu com eficácia, dignidade e decência. Declinou também receber pessoal estrangeiro de apoio mas com o argumento plausível de, para esse serviço, chegar a prata da casa.
Tomando por exemplos a China maoísta e a Índia, Amartya Sen, prémio Nobel da economia, provou que depois de secas, cheias ou outros grandes desastres naturais, fome grassou muitas vezes nas ditaduras e nunca nas democracias. Onde os governantes servem os governados, respondem perante eles, por eles são reconduzidos ou despedidos - tratam dos interesses deles e só depois dos seus. Politicamente a China de hoje está longe de ser uma democracia mas está mais longe ainda da China de Mao Tsé Tung. As fomes provavelmente acabaram e enraíza-se o princípio da prestação de contas cívicas.
A Birmânia é um buraco. Benfeitores encartados das desgraças do mundo - Bernard Kouchener, vários americanos - acham que nestes casos se deve fazer bem à força. Entende-se a tentação mas quando se lhe cedeu os resultados foram quase sempre desastrosos.
José Cutileiro
Expresso Online, 19-05-2008
Nem a China nem a Birmânia são democracias, isto é, em nenhum dos dois países estão estabelecidos mecanismos institucionais para controlo dos governantes pelos governados tais como eleições livres, tribunais independentes, respeito pelos direitos civis e políticos de cada um - mas há graduações. Na Birmânia, uma ditadura militar brutal assente em economia rudimentar de petróleo, matérias-primas e droga, explora, oprime e sufoca uma população miserável, fechada ao resto mundo. Na China, uma ditadura burocrática consegue fazer coincidir um dos capitalismos mais vigorosos do mundo - a poucas décadas de suplantar os Estados Unidos - e regime político de partido único, para contentamento quase geral da população cujo bem-estar material tem crescido nos últimos anos como os bambus proverbiais.
Há outras diferenças que saltaram agora claramente à vista. Os generais birmaneses e a sua cadeia de comando não informaram o povo da chegada iminente do ciclone, aumentando assim o número de mortos da primeira leva. Não puseram logo a tropa a prestar socorros (foram monges budistas que tiraram árvores caídas das ruas); começaram por recusar ajuda estrangeira para depois autorizarem um pinga-pinga insuficiente de material, pessoal de fora foi proibido de entrar; por fim parte da ajuda está a ser pilhada pelas próprias autoridades. A China, desde o Presidente da República e o primeiro-ministro até aos militares mandados para Sichuan, aos bombeiros e aos médicos e paramédicos, passando pela informação, reagiu com eficácia, dignidade e decência. Declinou também receber pessoal estrangeiro de apoio mas com o argumento plausível de, para esse serviço, chegar a prata da casa.
Tomando por exemplos a China maoísta e a Índia, Amartya Sen, prémio Nobel da economia, provou que depois de secas, cheias ou outros grandes desastres naturais, fome grassou muitas vezes nas ditaduras e nunca nas democracias. Onde os governantes servem os governados, respondem perante eles, por eles são reconduzidos ou despedidos - tratam dos interesses deles e só depois dos seus. Politicamente a China de hoje está longe de ser uma democracia mas está mais longe ainda da China de Mao Tsé Tung. As fomes provavelmente acabaram e enraíza-se o princípio da prestação de contas cívicas.
A Birmânia é um buraco. Benfeitores encartados das desgraças do mundo - Bernard Kouchener, vários americanos - acham que nestes casos se deve fazer bem à força. Entende-se a tentação mas quando se lhe cedeu os resultados foram quase sempre desastrosos.
José Cutileiro
Expresso Online, 19-05-2008
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