Ataques assassinos a imigrantes por sul-africanos nos bairros de lata à roda de Joanesburgo onde formiga um proletariado mal pago ou desempregado foram lamentados e condenados por políticos e observadores locais e estrangeiros mas não deveriam surpreender ninguém. A África do Sul (RAS) é pátria de muitas nações e as relações entre elas nem sempre foram pacíficas. As mais numerosas de origem branca, de cepa britânica e de cepa holandesa, bateram-se há pouco mais de 100 anos nas terríveis Guerras dos Boers. Entre as de origem negra, a dos zulus e a dos khosa confrontaram-se sem quartel durante o "apartheid". O Governo de minoria branca, de resto, estimulava esses conflitos segundo o princípio clássico de dividir para reinar.
O fim do "apartheid", surpreendentemente pacífico, beneficiou da queda da União Soviética e de outras circunstâncias propícias. Do exterior, recebeu apoio de todas as potências do mundo; no interior, foi dirigido por homens de grande e rara estatura política e moral. Em 1994 as primeiras eleições gerais livres, marca de liberdade que selou o fim do "apartheid", foram vividas com empenho cívico e entusiasmo inimagináveis por quem esteja habituado à rotina das democracias estabelecidas. Na noite do voto, numa rua em festa de Joanesburgo, um rapaz eufórico disse à CNN: "É melhor do que estar com uma mulher! Bem, excepto se ela for virgem...".
Passaram catorze anos. Muita coisa melhorou no país que continua a ser farol e esperança da África inteira. A democracia parlamentar funciona, sem tentativas de golpe de estado, revolta militar, revolução popular ou separatismo. A sociedade civil é robusta e interveniente. Há diferenças escandalosas de fortuna mas vê-se progresso em coisas básicas: água, electricidade, esgotos, arruamentos.
A chefia política, porém, piorou muito. Duas decisões-chave de Thabo Mbeki tiveram consequências trágicas, uma para a saúde do país, outra para a posição da RAS em África. Por se recusar a aceitar o consenso médico sobre sida e HIV, Mbeki tem promovido profilaxia e tratamentos absurdos que ajudam a propagar a doença em vez de a combaterem e comprometem o vigor futuro do país. Por se recusar a condenar Mugabe e acelerar a sua sucessão, transformou o pinga-pinga tradicional de emigrantes do Zimbabwe para a RAS num fluxo permanente e o resultado está à vista.
Os sul-africanos olharam sempre por cima da burra para vizinhos que, desde que há minas no Rand, querem ir lá trabalhar à procura de sustento e de aforro. E era inevitável que o fim do "apartheid" levasse à substituição de solidariedades antigas por rivalidades modernas. Mas chefia política lúcida e corajosa teria sabido que deixar Mugabe no poder era deitar fogo à pólvora.
Ao contrário de Mbeki, Jacob Zuma, seu sucessor presuntivo, vem da pobreza do campo, fez a luta armada, cumpriu anos de prisão em Robben Island e não tem nada a provar sobre o passado. Para bem de toda a África talvez decida virar-se para o futuro.
José Cutileiro
Expresso Online, 29-05-2008
O fim do "apartheid", surpreendentemente pacífico, beneficiou da queda da União Soviética e de outras circunstâncias propícias. Do exterior, recebeu apoio de todas as potências do mundo; no interior, foi dirigido por homens de grande e rara estatura política e moral. Em 1994 as primeiras eleições gerais livres, marca de liberdade que selou o fim do "apartheid", foram vividas com empenho cívico e entusiasmo inimagináveis por quem esteja habituado à rotina das democracias estabelecidas. Na noite do voto, numa rua em festa de Joanesburgo, um rapaz eufórico disse à CNN: "É melhor do que estar com uma mulher! Bem, excepto se ela for virgem...".
Passaram catorze anos. Muita coisa melhorou no país que continua a ser farol e esperança da África inteira. A democracia parlamentar funciona, sem tentativas de golpe de estado, revolta militar, revolução popular ou separatismo. A sociedade civil é robusta e interveniente. Há diferenças escandalosas de fortuna mas vê-se progresso em coisas básicas: água, electricidade, esgotos, arruamentos.
A chefia política, porém, piorou muito. Duas decisões-chave de Thabo Mbeki tiveram consequências trágicas, uma para a saúde do país, outra para a posição da RAS em África. Por se recusar a aceitar o consenso médico sobre sida e HIV, Mbeki tem promovido profilaxia e tratamentos absurdos que ajudam a propagar a doença em vez de a combaterem e comprometem o vigor futuro do país. Por se recusar a condenar Mugabe e acelerar a sua sucessão, transformou o pinga-pinga tradicional de emigrantes do Zimbabwe para a RAS num fluxo permanente e o resultado está à vista.
Os sul-africanos olharam sempre por cima da burra para vizinhos que, desde que há minas no Rand, querem ir lá trabalhar à procura de sustento e de aforro. E era inevitável que o fim do "apartheid" levasse à substituição de solidariedades antigas por rivalidades modernas. Mas chefia política lúcida e corajosa teria sabido que deixar Mugabe no poder era deitar fogo à pólvora.
Ao contrário de Mbeki, Jacob Zuma, seu sucessor presuntivo, vem da pobreza do campo, fez a luta armada, cumpriu anos de prisão em Robben Island e não tem nada a provar sobre o passado. Para bem de toda a África talvez decida virar-se para o futuro.
José Cutileiro
Expresso Online, 29-05-2008
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