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As crianças sobredotadas e a escola

RICARDO MONTEIRO: «Desperdiçar talentos é a pior heresia que se pode cometer.»

Presidente do Conselho Pedagógico da Universidade da Criança fala ao Destak das limitações que as crianças sobredotadas enfrentam no nosso país e da nova escola-piloto que será criada este ano.

Patrícia Susano Ferreira pferreira@destak.pt

Como são as crianças sobredotadas?

Há sobredotados que parecem ter tudo sem esforço, há outros que se desenvolvem tardiamente e, outros ainda, que nunca tiveram qualquer oportunidade, ou que não puderam desenvolver o seu potencial. Muitos sobredotados transformaram-se em especialistas ou em adultos extraordinariamente criativos; outros não se destacam, na sua actividade profissional, dos restantes adultos com dotação média. Os factores que facilitam um desenvolvimento positivo dos sobredotados são, por exemplo, um ambiente em que haja amor e desafios nos primeiros anos, um estímulo precoce, adequado e direccionado, modelos, estabelecimento de objectivos, confiança nas próprias capacidades ou a aquisição de conhecimentos, incluindo os técnicos, necessários para o desenvolvimento profissional. Resumindo, podemos afirmar que os sobredotados passam por um desenvolvimento emocional normal e, no geral, não correm mais riscos do que os normalmente dotados. Contudo, há particularidades que, em determinadas circunstâncias, exigem uma atenção especial.

Que características é que permitem aos pais saberem se o filho é sobredotado?

Entre as características típicas destas crianças destacam-se as de aprendizagem e de raciocínio, a atitude perante o trabalho e os interesses, e o comportamento social. Dentro destas destacam-se, por exemplo, os conhecimentos profundos em algumas áreas, o vocabulário invulgar para a idade e o discurso expressivo; mas também o tédio perante tarefas de rotina, o perfeccionismo e a crítica; e ainda a preocupação com termos como justo/injusto, bom/mau e a prontidão de se rebelar contra as autoridades, por exemplo.

Quantas crianças sobredotadas é que existem em Portugal e quantas destas estão identificadas?

Não existe resposta concreta para nenhuma das perguntas. Estima-se que existam entre 35 mil e 50 mil crianças e jovens sobredotados em Portugal. Poucos são detectados porque não existe por parte do sistema escolar um processo que os identifique e proteja, ao contrário do que se passa com os alunos com incapacidades. Há falta de legislação e também de sensibilização por parte dos agentes de ensino. Alguns indicadores mundiais revelam que apenas 0,1% da população mundial tem QI muito acima de 200 e pertence a uma classe extraordinária de sobredotados. Aproximadamente dois terços (68%) da população atingem um QI de 85 a 115, podendo esta faixa ser designada por média de inteligência. Os desempenhos extremamente baixos ou extremamente altos são raros em igual medida: contudo, cerca de 2% da população tem um QI muito baixo (inferior a 70) ou muito alto (superior a 130).

O que pode acontecer se uma criança não for identificada e acompanhada?

O talento na escola exibe e explicita nos estudantes a capacidade de entender e aprender. Todos os professores agradecem a chegada de crianças talentosas pois as suas actividades intelectuais coincidem com o plano de desenvolvimento curricular previsto. Mas em algumas oportunidades existem alguns alunos cujas condições excepcionais provocam incertezas e também dificuldades na tarefa do ensino. Neste contexto, muitos dos alunos sobredotados e talentosos não identificados são “catalogados” como imaturos socialmente e emocionalmente. Assim, tem-se constatado que uma educação que não se esforce por se adaptar a tais condições pessoais pode provocar desinteresse pelos estudos e desmotivação geral já que os procedimentos pedagógicos utilizados na aula geralmente não são os adequados à rapidez de raciocínio e capacidade de abstracção. No entanto, ante estes questionamentos vale perguntar-se: - o que entendemos quando mencionamos os sujeitos sobredotados e talentosos? A “sobredotação” é uma capacidade geral composta de factores intelectuais significativamente mais altos que o grupo médio e o “talento” é considerado como uma capacidade particular em um determinado aspecto cognitivo ou destreza. A estas características somam-se factores não intelectuais (dedicação, força pessoal, vontade de fazer sacrifícios) e factores ambientais (ressonância positiva familiar e escolar). As potencialidades destas crianças podem declinar se carecerem de apoio cultural e familiar já que ambos são factores decisivos para seu desenvolvimento integral. Conhecendo esta realidade, devemos assumir o desafio de construir uma educação diferente, encaminhada à flexibilização e intervenção escolar destas crianças e jovens. Há muitos professores, por exemplo, que resistem à sobredotação como se ela fosse uma crença e não uma realidade palpável da sociedade humana. E ao resistirem dessa forma causam problemas aos alunos com altas capacidades rejeitando-os, ignorando-os e não lhes dando a atenção necessária ao pleno aproveitamento das suas potencialidades. Desperdiçar talentos é a pior heresia que um País pode cometer. Torna-se, portanto, necessário procurar uma definição para a sobredotação que possibilite uma intervenção educativa bem sucedida, quer no que diz respeito à criação de condições para a expressão e desenvolvimento de qualidades excepcionais, quer para a resolução de eventuais situações educativas problemáticas relativamente a estes alunos.

Quais as grandes limitações destas crianças no nosso país?

Um número considerável de crianças sobredotadas são descobertas na escola. A escola é a área da vida onde o sobredotado pode apresentar o melhor ajuste ou o pior desajuste. Tanto a sua capacidade superior pode ajudar-lhe nos estudos e contribuir para um desempenho excepcionalmente bom, como a mesma capacidade pode levar ao tédio, aborrecimento ou rebeldia capazes de provocar desempenho insatisfatório. Além disso, as dificuldades tendem a surgir devido ao facto do sobredotado ser um indivíduo excepcionalmente inteligente mergulhado num mundo de pessoas com intelecto médio - facto este que pode gerar uma série de dificuldades de adaptação. Por exemplo, o aproveitamento do tempo: uma criança de QI 140 aproveita apenas 50% de uma aula comum, sendo o resto, para ela, desinteressante; e uma criança com um Q.I. 170 (muito sobredotada) praticamente nada aproveita das aulas normais. Temos também a hostilidade dos colegas, porque estas crianças são frequentemente encaradas como uma ameaça pelos companheiros, pois, elas pode fazer com que os padrões de trabalho da turma passem a ser mais rigorosos e o professor passe a esperar mais de seus alunos. Como consequência, o sobredotado muitas vezes acomoda-se, já que os desafios propostos pela escola estão muito abaixo da sua capacidade, produzindo muito menos do que é capaz simplesmente por não estar estimulado. Por outras palavras, o seu desenvolvimento é bloqueado e, caso não conte com pais que o estimulem e pessoas que o persuadam a, por si só, empenhar-se mais a fundo, fora da escola, no mundo dos conhecimentos e das práticas correspondentes à sua dotação, o sobredotado procurará realizar rapidamente os deveres escolares e desperdiçar a quase totalidade do seu tempo em simples recreação inconsequente. Sendo as suas necessidades e características psicológicas relevantemente diferentes das dos alunos em geral, estes alunos precisam de um atendimento educacional também diferenciado, ou seja, preparado para dar-lhes o tratamento adequado. Atendimento diferenciado que não existe no nosso País, sendo esta certamente a maior limitação destas crianças no nosso País.

A criação de uma escola especializada não os pode afastar demasiado da realidade e da esfera dos relacionamentos com pessoas ditas ‘normais’?

Quem quer ter aquilo que nunca teve, tem de estar pronto para fazer aquilo que nunca fez. É preciso iniciar uma verdadeira revolução educacional. Precisamos de uma escola que respeite as necessidades especiais de uma criança com altas habilidades e elevados potenciais e que invista na qualidade de ensino. O que é normal deixa de ser normal. O que é cinzento passa a ser colorido. Aqueles que estão de costas para o futuro, realinham-se com a inteligência e deixam de ser reféns do sistema de ensino em agonia que temos. Parafraseando o Dr. Nelson Lima podemos dizer que aumentaram as horas de presença dos alunos nas escolas, aumentaram o número de matérias e aumentaram, na verdade, os problemas. Ou seja, temos mais escola, o que não significa melhor escola. Urge uma escola inclusiva diferente para todas as crianças. Vivemos numa época completamente diferente daquela em que a escola actual foi criada. Por causa disso, o ensino massificou-se em demasia, adensou-se, está obsoleto e não tem em conta as necessidades efectivas da sociedade contemporânea. Não basta encher as escolas de computadores para desde logo se acreditar que a escola modernizou-se. Pode modernizar-se nos equipamentos mas continua desfasada da sociedade em que agora vivemos. A inteligência das nossas crianças está a ser castrada e é por isso que aumenta o insucesso escolar. Acima de tudo as crianças e os jovens sobredotados sentem que a escola não lhes favorece o pleno desenvolvimento das suas potencialidades. A formação dos professores tem sido exígua, pouco humanista e assenta sobre métodos pedagógicos em geral obsoletos. Muitos professores têm-me confessado que não sabem nada sobre "inteligências múltiplas", "estilos cognitivos", "mapas mentais", "sobredotados"e tantas coisas mais que são hoje em dia fundamentais para um ensino ajustado aos novos tempos. Se nos guiarmos pelo já dito atrás, que cerca de 2 % da população escolar tem um QI de 130 ou superior, então significará, p. ex., que numa cidade grande, que tenha cerca de 35.000 alunos da escola primária, pelo menos, aproximadamente 700 deles seriam intelectualmente sobredotados. Assim, não é de admirar que muitos professores, no decurso da sua actividade profissional, tenham já tido experiências com alunos sobredotados. Normalmente, chamam-lhes a atenção os alunos com excelentes desempenhos. Conhecem crianças recém-chegadas à escola que vêm para a primeira classe com muita experiência na leitura ou outras que já dominam as quatro operações aritméticas básicas, ou seja, todo o programa de matemática da escola primária, e que se aborrecem de morte enquanto os colegas aprendem a soletrar ou a somar. Conhecem jovens que adquiriram, por eles mesmos, conhecimentos vastos e fundados sobre determinadas disciplinas, p. ex. informática ou línguas estrangeiras. Uma escola especializada em sobredotação beneficia todos os alunos. Sobredotados ou não. Beneficia todo o sistema educativo e aumenta a qualidade de vida de qualquer escola.

Acredita que este projecto para a escola-piloto em Portimão possa arrancar ainda este ano lectivo?

Sim acredito. Acredito nas capacidades do staff da Universidade da Criança e do Instituto da Inteligência. Acredito que a inteligência é uma vencedora nata. Tudo é uma questão de tempo. Plantemos com sabedoria, para colhermos com paciência. Estes são os ensinamentos da Escola da Vida e acredito também que o bom senso das entidades envolvidas irá prevalecer. Autarquia e Ministério da Educação são dois agentes importantes no processo de licenciamento deste equipamento, que podem fazer parte da solução, ou do problema. Esperemos que façam parte da solução e assim em Setembro de 2008 estaremos a funcionar.

O projecto pode estar em risco e a burocracia é um dos motivos que apontam, assim como a incompreensão do Ministério da Educação. Que tipo de entraves é que o ministério está a colocar?

O Ministério da Educação analisa todas as pretensões. Públicas e privadas. Mas nem sempre tem resposta para tudo, nem para todos. Vive dias difíceis. Carrega feridas mal saradas de um sistema de ensino de eficácia questionável e “tutela” liberdades essenciais consagradas na constituição da República Portuguesa (...)

O que não podemos aceitar é que se desperdice um vasto leque de conhecimentos, como tem geralmente acontecido, e que revela uma incúria grave dos poderes públicos. Nos tempos que vivemos o Ministério da Educação não deveria insistir em continuar a desperdiçar esse manancial de conhecimentos, nem a força da iniciativa privada... Investindo menos na burocracia... e apostando mais nas sinergias globais e estratégicas entre o sector público e privado. O ensino particular com as suas inovações na área do ensino não pode ser castigado pela falta da igualdade de tratamento. Esperamos ansiosos pelo dia em que as escolas particulares e as escolas públicas “passem pela mesma peneira”... Ou até quando é que vamos tapar o sol com a dita peneira?

Quantos alunos é que vão ser beneficiados e de quanto será o investimento?

Este projecto beneficia directamente 40 a 45 alunos do 1.º ano, do 1.º Ciclo do Ensino Básico. De uma forma indirecta são acompanhadas aproximadamente uma centena de crianças, dos 6 aos 10 anos, da região algarvia. São formados Professores e educadores na àrea da “Pedagogia da Sobredotação” através de workshops e cursos de especiliazação. O investimento nesta primeira fase está estimado em meio milhão de euros até Setembro de 2008 para os projectos Leonardo da Vinci e Albert Einstein da Universidade da Criança. E cria aproximadamente 30 lugares de trabalho directos e indirectos...

Se o projecto for para Espanha, será uma grande perda para o nosso país e um desrespeito para a inteligência?

Seria triste e seria uma perda. Seria triste não poder “fazer o milagre na própria terra”. E seria uma perda. Sim, seria uma perda. Seria uma perda de esperança para muitos corações felizes e outras tantas mentes brilhantes, seria uma perda porque pequenas luzes se apagariam lentamente e seria uma perda porque outras tantas vozes deixariam de cantar no palco superior da inteligência humana... E seria sim um grande desrespeito para a inteligência porque deixaríamos de formar pensadores, líderes no teatro social e no teatro psíquico, empreendedores que desenvolvessem hábitos de profissionais excelentes, pensadores com uma consciência humanística e ecológica, seres humanos sem fronteiras que soubessem colocar-se no lugar dos outros e seres humanos que aprendesse a ser autores da sua própria história. Seria sim um grande desrespeito à inteligência...

DESTAK, 23-06-2008

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